quarta-feira, 18 de março de 2009

Acorde Final


Na vida não há prêmios nem castigos, apenas consequências.
Robert Green Ingersoll

Acorde Final

"Eu havia colocado no toca-discos aquele disco com poemas de Vinícius e do Drumond, disco antigo, long-play, o perigo são os riscos que fazem a agulha saltar, felizmente até ali tudo tinha estado liso e bonito, sem pulos e sem chiados, o próprio Vinícius, na sua voz rouca de uísque e fumo, havia recitado os sonetos da separação, da despedida, do amor total, dos olhos da amada. Chegara finalmente o último poema, meu favorito, "o haver" - o Vinícius percebia que a noite estava chegando, tratava então de fazer um balanço de tudo o que se fez e disso, o que foi que sobrou? Por isso as estrofes começam todas com uma mesma palavra, "resta..." - foi isso que sobrou.

Resta essa capacidade de ternura, essa intimidade perfeita com o silêncio...
Resta essa vontade de chorar diante da beleza, essa cólera cega em face da injustiça e do mal entendido...Resta essa faculdade incoercível de sonhar e essa pequenina luz indecifrável a que às vezes os poetas tomam por esperança...
Começava naquele momento a última quadra, e de tantas vezes lê-la e outras tantas ouvi-la, eu já sabia de cor as suas palavras, e as ia repetindo dentro de mim, antecipando a última, que seria o fim, sabendo que tudo o que é belo precisa terminar.
O pôr-do-sol é belo porque as suas cores são efêmeras, em poucos minutos não mais existirão.
A sonata é bela porque sua vida é curta, não dura mais que vinte minutos. Se a sonata fosse uma música sem fim é certo que o seu lugar seria entre os instrumentos de tortura do diabo, no inferno.
Até o beijo... Que amante suportaria um beijo que não terminasse nunca?
O poema também tinha de morrer para que fosse perfeito, para que fosse belo e para que eu tivesse saudades dele, depois do seu fim. Tudo o que fica perfeito pede para morrer. Depois da morte do poema viria o silêncio, o vazio. Nasceria então outra coisa no seu lugar: a saudade. A saudade só floresce na ausência.
É na saudade que nascem os deuses - eles existem para que o amado que se perdeu possa retornar - que a vida seja como o disco, que pode ser tocado quantas vezes se desejar. Os deuses - nenhum amor tenho por eles, em si mesmos. Eu os amo só por isso, pelo seu poder de trazer de volta para que o abraço se repita. Divinos não são os deuses. Divino é o reencontro.
A voz de Vinícius já anunciava o fim. Ele passou a falar mais baixo.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada, ela virá me abrir a porta como uma velha amante...
E eu, na minha cabeça, automaticamente me adiantei, recitando em silêncio o último verso: ".. Sem saber que é a minha mais nova namorada."
Foi então que, no último momento, o imprevisto aconteceu: a agulha pulou para trás, talvez tenha achado o poema tão bonito que se recusava a ser uma cúmplice do seu fim, não aceitava a sua morte, e ali ficou a voz morta do Vinícius repetindo palavras sem sentido: "sem saber que é a minha mais nova"..."sem saber que é a minha mais nova"..."sem saber que é a minha mais nova..."
Levantei-me do meu lugar, fui até ao toca-discos, e consumei o assassinato: empurrei suavemente o braço com o meu dedo, e ajudei a beleza a morrer, ajudei-a a ficar perfeita. Ela me agradeceu, disse o que precisava dizer, sem saber que é a minha mais nova namorada... Depois disso foi o silêncio.
Fiquei pensando se aquilo não era uma parábola para a vida, a vida como uma obra de arte, sonata, poema,coreográfico. Já no primeiro momento quando compositor, ou o poeta ou o dançarino preparam a sua obra, o último momento já está em gestação. É bem possível que o último verso do poema tenha sido o primeiro a ser escrito por Vinícius. A vida é tecida como as teias de aranha: começam sempre do fim. Quando a vida começa do fim ela é sempre bela por ser colorida com as cores do crepúsculo.
Não, eu não acredito que a vida biológica deva ser preservada a qualquer preço.
"para todas as coisas há o momento certo. Existe o tempo de nascer e o tempo de morrer" (Eclesiastes 3, 1s).
A vida não é uma coisa biológica. A vida é uma entidade estética. Morta a possibilidade de sentir alegria diante do belo, morreu também a vida, tal como Deus no-la deu - ainda que a parafernália dos médicos continue a emitir seus bipes e a produzir ziguezagues no vídeo.
A vida é como aquela peça. É preciso terminar.
A morte é o último acorde que diz: está completo. Tudo o que se completa deseja morrer".

Rubem Alves

Esse texto, Acorde Final, é um texto que julgo definitivo. Conheci em 2001, na época do cursinho, através do professor de literatura. E nunca mais esqueci.

Fragonard













Fragonard é o nome de uma perfumaria em Grasse, ao sul da França. Tive a oportunidade de conhecer a cidade e a perfumaria, em 2008. O que mais seduz no pequeno vilarejo é a atmosfera bucólica e as plantações de lavanda. Tem flores lavandas até no canteiro do supermercado. Lavanda é a nossa "beijinho". Plantou, pegou.

A fábrica mantém um museu vivo de essências e uma sala de aula para que se aprenda a arte da perfumaria. As vidrarias lá expostas, do início do século XVII, lembram os objetos exibidos no Castelo de Heidelberg, em plenas composições alquímicas.

Fragonard também é o nome de um pintor. Jean Honoré Fragonard nasceu em Grasse, a cidade da perfumaria Fragonard, é autor de obras notórias. Algumas estão expostas no Louvre. O estilo é rococó e hedonista.

E, por fim, Fragonard é um estilo de arte. Sabe aquelas coleções antigas de aparelhos de chá da época de nossas bisavós, que continham uma cena romântica bucólica ao centro? Normalmente um casal que se estende a mão. É Fragonard. Cenas frívolas e galantes, cheias de encanto e romantismo, parecendo anunciar o Impressionismo de Renoir.

Contos de Dona Ivone


Dona Ivone é um ser a parte naquele salão de beleza. Cerca de 50 anos, manca, sorriso com dentes amarelos e outros faltando, um metro de altura, sem família, vivendo em uma pensão e muitos contos de paróquia. Dia sim está destilada em álcool, dia não também.

Sonha em se casar e em ter dentes brancos: "quando for na faculdade, vou mandar eles colocarem em mim dentes brancos. Quem sabe assim eu arrumo um namorado".

Na vida de Dona Ivone, o ator principal é o padre da Igreja São Judas. Conta ela que o padre é mister em levar as beatas mais atrevidas para trás do altar depois da missa. E ela não foi uma delas. Quando conta as malícias de sua mente, diz, assanhada: "bem que o padre poderia me levar! Aquele pedaço de mau caminho!! E ri, sem fim, sorriso maroto".

O causo mais engraçado ocorreu sábado passado. Dona Ivone contou que, certa vez, na praia, estava embaixo de um coqueiro, quando, de repente, sentiu gotas de sangue pingarem sobre seu corpo. Olhou para cima, nada via. Mais tarde, um nativo contou a ela que naquele coqueiro uma mulher se enforcara, devido a perda de um amor. Dona Ivone está convicta do sangue ao seu corpo, embora apenas ela tenha visto o vermelho. Talvez seja um sinal de que o amor dela esteja próximo. Domingo.